Lacrando na Consciência
Diálogo fictício: Adriano Suassuna e os poetas em defesa do vernáculo
Cenário: Uma sala de estar elegante e antiga, com móveis de madeira escura e estantes repletas de livros de capas gastas. Um relógio de pêndulo marca o tempo de maneira pausada. Ao centro, uma grande mesa de café, repleta de xícaras e pratos com bolos e biscoitos. Sentados ao redor da mesa estão seis dos maiores poetas brasileiros: Adriano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes.
Adriano Suassuna: (levantando a mão, teatral) Pois vejam só, caros amigos, ando escutando umas conversas por aí que me deixam perplexo! “Bora lá”, “crush”, “vai dar ruim”… Que língua é essa, meu Deus? Uma salada linguística cheia de anglicismos e gírias desmioladas! Parece que nosso vernáculo virou parque de diversões para estrangeirismos!
Carlos Drummond de Andrade: (rindo) Pois é, Adriano. Outro dia escutei um rapaz dizendo que sua vida “deu ruim”. Fiquei pensando: como assim, “deu ruim”? A vida dele virou um legume estragado? Um feijão fora da validade?
Cecília Meireles: (sorrindo delicadamente) Ah, Drummond, talvez seja culpa dos algoritmos. Essas expressões correm pelo vento virtual como folhas secas no outono… Mas confesso que fico saudosa do tempo em que o amor era “um verso declamado ao pé da janela” e não “um crush no Instagram”…
João Cabral de Melo Neto: (com a voz firme) Crush! Crush! Crush! Para mim, isso não soa como um termo amoroso, mas como o som de um dente quebrando ao morder uma azeitona com caroço!
Vinícius de Moraes: (rindo alto) Ah, João, você tem razão! Se é para falar de amor, que se diga “amado”, “apaixonado”, “amor verdadeiro”! Mas, por favor, não me venham com “crush”, que mais parece nome de refrigerante do que de um sentimento!
Manuel Bandeira: (suspirando) Ah, meus caros, já não basta o “bora lá” que mais parece o grito de um cangaceiro convocando para a peleja? E agora ainda temos o “lacrou”… Antigamente, lacrar era para cartas e documentos importantes, mas hoje, pelo visto, lacra-se tudo! “Lacrou na festa”, “lacrou no look”, até no supermercado deve ter alguém lacrando!
Suassuna: (balançando a cabeça) Pois não é? Eu perguntei a um jovem se ele gostava de livros. Ele disse: “Tô nem aí, senhor, mas lacrei no último jogo!” Quase morri de desgosto! Que é isso de “lacrar” num jogo? Rasgou o uniforme? Rompeu o campo?
Cecília Meireles: (intervindo com humor) Talvez ele tenha ganhado, Adriano… No mundo de hoje, a vitória parece vir com lacre!
Vinícius de Moraes: (com ironia) E o amor… Parece que ficou sem lacre, escapando pelas frestas dos chats de mensagem!
Drummond: (pensativo) Talvez devêssemos “resgatar o lacre” de onde ele nunca deveria ter saído: das cartas de amor, dos envelopes perfumados que atravessavam mares e continentes…
João Cabral: (resmungando) A língua está se tornando um pastiche. Um mosaico mal acabado, cheio de termos descartáveis. “Bora lá”? Digo não, prefiro ficar!
Bandeira: (rindo) Pois é, João! E já me disseram que hoje, se você gosta de alguém, tem que “dar match”. Quando eu era jovem, dar match era acender o fósforo para acender o cigarro… Vai entender!
Suassuna: (com indignação cômica) “Dar match”? Pois, no meu tempo, o que dava match era o meu papagaio com a gata da vizinha! E sem aplicativo nenhum! Tudo ao natural, com direito a serenata de fim de tarde!
Vinícius de Moraes: (com um sorriso malicioso) Ah, Adriano, mas a culpa não é só do povo… A tecnologia também deu uma mãozinha. Todo mundo quer parecer “cool”…
Drummond: (arqueando as sobrancelhas) “Cool”? Olha aí mais um! Me diga, Vinícius, será que “cool” é porque está gelado, como uma garrafa de cerveja? E como fica a “quente” poesia de um verso bem feito?
Suassuna: (balançando a cabeça) Pois se é para ser “cool”, eu prefiro ser “tépido”, como uma sopa de fubá no inverno! E quer saber, declaro aqui um movimento: “vamos esquentar o português!” Vamos resgatar o valor das palavras, devolver-lhes a dignidade perdida em aplicativos!
Cecília Meireles: (batendo palmas) Bravo, Adriano! Acho que podemos começar escrevendo nossos versos sem gírias vazias, sem ruídos desnecessários, com a pureza de quem sabe que a palavra é o que dá vida ao nosso sentimento.
Manuel Bandeira: (rindo) Isso mesmo! Que lacremos a boca dos termos vazios com os nossos sonetos bem amarrados!
Vinícius de Moraes: (erguendo uma taça imaginária) Pois então, um brinde à nossa língua portuguesa, que nunca seja “crush”, mas sim o nosso grande amor eterno!
Todos: (em coro) Viva a língua portuguesa!
O relógio de pêndulo marca as horas com um som suave, enquanto o riso e as piadas continuam a encher o ar da sala, como se cada palavra fosse uma nota musical em um concerto de poesia viva e autêntica.