“Fico a olhar Sirius. E cá de baixo, deste chão que me cola, apesar de minhas misérias, de minha leucemia, de minhas truncadas recordações – ainda mais truncadas do que as células do meu sangue – eu lanço um repto ao claro globo azul que me fita lá do alto, lá do seu abismo com cinqüenta anos-luz de profundidade.
O sol, ó diáfana matéria, ó imensidade perdida dentro da imensidade, aqui onde me vês eu sou um Homem, Verme consciente, ‘roseau pensant’. Qual é o maior, Sirius ou Pascal? Qual dos dois vale mais, o sol ou o melancólico pensador?
Ó astro, Parsifal perdido no céu, tu ignoras teu nome. Vagueias, ó inocente, ó ingênuo absoluto, com teus gases excessivos e um pouco ridículos. Perambulas como um cego, passas como um surdo, vagueias como um desmemoriado de olhar vazio, e vê bem, considera que até para te humilhar é ainda do homem que tiro as imagens. Na verdade, és menos do que um cego, do que um surdo, do que um desmemoriado. A tábua de minha mesa é mais rica do que teu globo de átomos simplificados. De que vale o tamanho? Que nobreza tem a distância? Tu estás acorrentado às equações, mais do que por metáforas lá estão as estrelas de Andrômeda, a acorrentada do céu. Tu és Sirius, Alpha Canis Maioris. Tens ascensão reta e declinação; e nós, nós os vermes, servimos-nos de teu esplendor, cativando-o, domesticando-o e inscrevendo-o no Nautical Almanack. Servo colossal, não passas de servo. Eu sou um verme, mas tenho consciência de sê-lo. Sou miserável, e o sei. Sou ridículo, e riu-me. Sou culpado, e choro.
Ai de nós! A raça de Pascal anda traída. Muitos andam por aí, ó astro, a dizer que também somos acorrentados, que também somos apenas um aglomerado de átomos que durante um certo tempo se demoram em nossos limites, na esquina de um cotovelo, no vértice de um nariz, nas fugitivas pontas dos cabelos. Dizem também que somos ocos, que vivemos da casca que a sociedade nos empresta, ou das eructações que nos vêm das experiências mal digeridas. Mas não te iludas com esses detratores, ó astro. A insensatez dessa gente, por derrisão, é a contraprova de nossa dignidade. Nós temos um imenso privilégio, que é o avesso de nosso manto real; nós temos a glória do erro.
Mas eu não vou discutir contigo, estrela; não vou argumentar. Basta que me apresente: eis aqui um homem. A luz que me chega à retina não encontra um ser passivo e inerte, como uma placa recoberta de bromureto, que recebe a imagem, que a revela no banho dos humores, que a fixa no hipossulfito da memória, e em função desse impacto dos fótons age, fala, dança e chora. Não. Pensar não é simplesmente receber. É algo mais ativo, que vai ao encontro do objeto. Quando a luz do astro me bate à porta dos sentidos, há em mim alguma coisa que se ergue de um trono, que recebe o mensageiro, que examina a mensagem, apossando-se dela, transformando-a, sutilizando-a – e que diz ao coruscante vassalo do céu: ‘Tu és Sirius, Alpha Canis Maioris’”.