E se abordássemos o mundo de um jeito que não obrigasse as pessoas escolherem entre ciência e religião? Foi a pergunta de Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, quando presidiu um congresso de dois dias sobre física quântica e a filosofia Madhyamaka (uma das principais escolas de pensamento budista), em Nova Deli, na Índia, na semana passada.
De acordo com Sua Santidade, encontrar uma maneira de reconciliar filosofias científicas e religiosas é uma empreitada essencial para o futuro da nossa espécie. “Espero que congressos como este possam tratar de dois propósitos: estender o nosso conhecimento e aperfeiçoar nossa visão de realidade para lidarmos melhor com nossas emoções inquietantes”, disse o Dalai Lama ao abrir o evento.
Ele continuou: “Quando eu era jovem, a ciência era aplicada para impulsionar o desenvolvimento material e econômico. No fim do século XX, os cientistas começaram a notar que a paz mental é importante para a saúde física e o bem-estar. Como resultado da combinação entre acolhimento e inteligência, espero que nos preparemos melhor para contribuir com o bem-estar da humanidade.”
O Dalai Lama nunca foi avesso à ciência e, desde que iniciou seu mandato como líder em exílio do Tibet, ele defende a conciliação entre a ciência e a filosofia oriental (até mesmo o presidente chinês Mao louvou o Dalai Lama por sua “mente científica” depois de dizer que “religião é veneno”).
Essa intersecção de interesses estava visível na diversidade da plateia, composta por cerca de 150 bhikkhus tibetanos, acadêmicos e estudantes que se amontaram no centro de convenções da Universidade Jawaharlal Nehru (JNU). Todos estavam lá para escutar Dalai Lama, físicos e monásticos discutirem o ponto de encontro entre física quântica e a filosofia budista Madhyamaka.
Conforme o Dalai Lama relatou no início do congresso, em Nova Deli, ele só se deu conta da intersecção entre ciência quântica e Madhyamaka cerca de 20 anos depois de debater com o falecido físico nuclear indiano Raja Ramanna, falecido em 2004.
Segundo Sua Santidade, Ramanna lera os textos de Nagarjuna e estava impressionado com a semelhança entre as ideias do filósofo Madhyamaka, de dois mil anos atrás, e sua própria compreensão de física quântica contemporânea.
Em termos gerais, o budismo se divide em duas linhas principais de filosofia, Mahayana e Theravada. A escola Madhyamaka (“alguém que se atém ao meio” ou “o caminho intermediário”) faz parte da linha Mahayana de pensamento, e foi desenvolvida por Nagarjuna no século II. Embora interpretações ligeiramente diferentes da filosofia de Nagarjuna tenham emergido em abundância ao longo dos anos, uma ideia central que as une é a vacuidade.
De acordo com o pensamento Madhyamaka, todas as coisas são vazias, isto é, não contêm uma essência ou existência inerente. Essa vacuidade não se aplica só às pessoas e coisas, mas também às categorias analíticas usadas para descrevê-las. Segundo Nagarjuna, a vacuidade é produto da origem dependente de todas as coisas. Em outras palavras, todos os fênomenos carecem de uma existência inerente própria porque sua própria existência depende das condições que a originaram.
Contudo, para Nagarjuna, alegar que nada tem uma existência inerente não é a mesma coisa que dizer que nada existe; significa, na verdade, defender que nada contém uma “natureza fixa e permanente”.
Para deixar isso claro, Nagarjuna pressupôs duas verdades: uma verdade convencional e uma verdade absoluta. Assim, ele reconheceu que é possível perceber, ao mesmo tempo, as coisas como existentes mundo afora (a verdade convencional), bem como reconhecer que não dispõem de uma existência inerente (a verdade absoluta). Sustentar essas duas posições aparentemente contraditórias só é possível quando reconhecemos que a “realidade” é um fenômeno experiencial, e não um fenômeno com existência objetiva e independente da nossa experiência.
Se você está se perguntando o que essas meditações antigas sobre a natureza da realidade têm a ver com a física quântica contemporânea, você não está sozinho.
Um dos exemplos mais notórios da intersecção entre Madhyamaka e física quântica se encontra no princípio de dualidade onda-partícula, que sustenta que partículas elementares (férmions e bósons) podem apresentar características tanto de partículas quanto de ondas, mas não podem ser completamente reduzidas a partículas ou ondas.
“Parece que não há como formular uma descrição consistente do fenômeno da luz por meio da escolha de apenas uma das duas linguagens [partícula ou onda]”, Einstein disse uma vez, enquanto analisava a natureza da luz. “Parece que ora precisamos usar uma teoria, ora precisamos da outra. E, por vezes, utilizamos ambas. Estamos diante de um novo tipo de dificuldade. Temos dois panoramas contraditórios de realidade; separados, nenhum explica o fenômeno da luz por completo, mas juntos explicam.”
Assim como a função de onda da mecânica quântica — uma matriz de probabilidade usada por físicos para descrever o estado de um sistema em dado momento —, a dualidade onda-partícula nos direciona a um dos problemas centrais, do cerne da ciência quântica: será que existe uma realidade objetiva e independente, passível de quantificação, ou será que todas as medidas são subjetivas, em virtude do fato de que sempre dependem de um observador para aferi-las e, portanto, apenas refletem o conhecimento do observador?
Conforme Einsten e os físicos do congresso assinalaram, esses panoramas aparentemente contraditórios da realidade só fazem sentido lado a lado: um caminho intermediário como a filosofia Madhyamaka.
Por outro lado, o ato da observação empurra a indeterminação da função de onda para uma realidade definida: o gato dentro da caixa está morto ou vivo, o feixe de luz é composto por partículas ou ondas, e isso é estabelecido pelo ato da observação. Ainda assim, em cada caso, a realidade subjacente é que o gato e a luz não possuem, inerentemente, as características de vida ou morte, ou onda ou partícula; na verdade, a realidade subjacente — a função de onda — é indeterminada e só pode ser quantificada como um conjunto de probabilidades.
Outro aspecto da mecânica quântica digno de nota é o princípio do entrelaçamento. O princípio, abordado por Einstein e Schrödinger em 1935, ocorre quando pares ou grupos de partículas são gerados de tal forma que o estado de nenhuma partícula singular pode ser determinado. Cabe ao observador mensurar o estado do sistema quântico como um todo.
Com um sistema entrelaçado, o estado de cada partícula está relacionado às demais; mensurar uma partícula singular, portanto, influenciaria seus parceiros entrelaçados (o que Einsten descrevia como “ação fantasmagórica à distância”), ruindo os estados sobrepostos de todo o sistema quântico.
Precisamos de física e filosofia na tentativa de suprimir a ignorância e cessar o sofrimento – os principais objetivos do budismo
Na linguagem da filosofia de Nagarjuna, podemos dizer que a física quântica porta duas verdades: uma verdade convencional (que determina a realidade evidenciada através da observação) e a verdade absoluta (uma realidade indeterminada, expressa em probabilidades). Essas verdades da mecânica quântica refletem a filosofia Madhyamaka, no sentido de que a segunda professa que as coisas existem, de fato, mundo afora, mas não possuem uma essência intrínseca, objetiva, e derivam sua essência apenas das nossas interpretações subjetivas.
Além disso, em ambos os casos, a explicação das duas verdades é similar tanto em mecânica quântica quanto na filosofia Madhyamaka. No caso da mecânica quântica, entrelaçamento é uma expressão quantificável da noção de Nagarjuna de origem dependente — o estado de uma partícula quântica singular não é passível de descrição porque depende do sistema quântico como um todo, assim como os fenômenos de Nagarjuna não contêm essência inerente, dado que a existência das coisas depende das condições que as originaram.
Essas foram as ideias levantadas nos dois dias de congresso na JNU, em Nova Deli. Em geral, as conexões explícitas entre Madhyamaka e física quântica ficaram à mercê da interpretação da plateia. Os físicos se ativeram à física e os monásticos, ao budismo.
No entanto, assim como o próprio conceito, repleto de ideias aparentemente contraditórias e que se revelam complementares, Sua Santidade insistiu que precisamos de física e filosofia na tentativa de suprimir a ignorância e cessar o sofrimento – os principais objetivos do budismo. Tanto a ciência quanto a religião têm usos específicos. Um campo sem o outro geraria resultados aquém. Delinearia um panorama incompleto da realidade.
“Neste momento, perante as coisas tristes que se passam no mundo, chorar e orar não vai adiantar muito”, disse Sua Santidade. “Embora estejamos inclinados a rogar a Deus ou Buda para nos ajudarem a resolver esses problemas, capaz deles nos responderem que, já que fomos nós que os criamos, cabe a nós resolvê-los. A maioria dos problemas foi criada por seres humanos. Portanto, evidentemente, exige soluções humanas. Precisamos adotar uma abordagem secular ao promulgar valores humanos universais. O senso de que a natureza humana básica é positiva é uma fonte de esperança. Se tentarmos, de verdade, podemos mudar o mundo para melhor.”
Tradução: Stephanie Fernandes
Retirado de<http://motherboard.vice.com/pt_br/read/dalai-lama-religiao-sem-fisica-quantica-e-uma-realidade-incompleta/> em 05/12/2016