Retirado de https://journals.openedition.org/pontourbe/1814?lang=pt
Introdução
1 Em 1978, foi lançada a primeira edição do livro Orientalismo, de Edward Said, considerado um marco na literatura conhecida como pós-colonial. Em sua obra, Said analisa a produção de conhecimento do Ocidente sobre o Oriente como um discurso que legitima a condição hegemônica do primeiro sobre o segundo. Muito influenciado por Foucault, Said parte do pressuposto de que o produtor de determinado saber olha para determinado objeto de acordo com o contexto social que está inserido, o que inclui as relações de poder entre aquele que conhece e aquele que é conhecido. Com isso, o autor mostra como esse discurso sobre o oriental que é criado no Ocidente é coerente com a situação colonial que por muito tempo vigorou entre esses “dois lados” do mundo. A imagem de oriental construída pelo Ocidente é a de um ser selvagem, com pouca racionalidade, desprovido de moral, alguém que não pode se autogovernar e, portanto, necessita de um tutor.
2 Mas provavelmente não é essa a imagem que o oriental tem de si próprio, mais do que isso, a própria categoria “oriental” engloba uma diversidade tão grande de culturas que generalizar características é criar uma ideia que pouco corresponde à realidade. Por esse motivo, pode-se afirmar que o Orientalismo tem muito mais a dizer sobre o Ocidente que o criou do que sobre o Oriente. As interpretações feitas pelo Ocidente estão muito mais carregadas de informações sobre o ocidental do que sobre o oriental que elas descrevem. Said não afirma de maneira alguma que há uma intencionalidade por parte dos autores que falam sobre o Oriente de subjugar o oriental para mantê-lo sob domínio colonial. O que ele propõe é que não se pode desconsiderar os efeitos da interação geopolítica entre as sociedades de origem daquele que estuda e daquele que é estudado no resultado final da obra. E, no sentido contrário, como o conhecimento gerado influi nas estruturas de poder.
3 A metodologia empregada por Said trata o Orientalismo como uma grande área de conhecimento que abrange todos os aspectos da sociedade dita oriental. Cabe ao orientalista conhecer a economia, a cultura, a religião, a geografia e todos os outros aspectos que marcam esse todo chamado Oriente. É a partir desse todo construído por diversas obras, seja literária ou acadêmica, que o ocidental cria o seu Oriente. Essa forma de pensar a construção de um imaginário sobre determinado povo pode ser empregada em outros contextos. O presente trabalho integra o projeto de pesquisaOrientalismos Tropicais: exercícios e imaginação da Índia e do “Oriente” a partir do Brasil e parte da idéia de Edward Said que para compreender se constrói uma imaginação sobre o Oriente nos países latino-americanos, em especial a imaginação da Índia construída no Brasil. No contexto analisado por Said, havia hegemonia por parte da Europa e posteriormente dos Estados Unidos sobre o Oriente. Mas como se imagina um outro tão distante geográfica e culturalmente que, a princípio, não se encaixam em relações hegemônicas de poder e cultura? Qual é a Índia que está disponível no Brasil para ser conhecida? Como que um país subalterno na geopolítica global imagina outro que está na mesma situação de “Terceiro Mundo”? Essas são as perguntas que temos como pano de fundo de nossa pesquisa.
4 No início do projeto, realizamos um extenso levantamento bibliográfico através de sites de venda de livros e acervos de bibliotecas, revisando e complementando um banco de dados que visa classificar tudo que se publicou sobre Índia no Brasil por meio de livros e periódicos, nas áreas de literatura, acadêmica e religiosa, entre outras, na tentativa de mapear esse grande universo imaginativo. Nesse momento, estamos analisando a bibliografia levantada e buscando outras fontes que não entram no catálogo de publicações, mas contribuem para a construção de uma Índia no imaginário brasileiro, como produtos que exploram imagens orientais, notícias de jornal e o tema que cabe a mim pesquisar dentro do grupo: religiões e espiritualidade.
5 A partir dos diálogos com o orientador e os outros integrantes do grupo de pesquisa, além das informações obtidas na internet e da minha experiência pessoal, deparei-me com dois modelos de instituições religiosas que se encaixavam no objetivo do projeto: a) as fundadas na Índia com ramificações no Brasil, como Ananda Marga e Brahma Kumaris; e b) aquelas nas quais religiões bastante arraigadas no Brasil construíram relações espirituais com a Índia e o Oriente através dos ensinamentos passados por entidades espirituais indianas incorporadas por médiuns brasileiros. Foi dada maior atenção ao segundo modelo de instituição, no qual a Índia é integrada por meios materiais, como livros, doutrinas institucionais e imagens (literárias e iconográficas), mas principalmente a partir de experiências sensoriais dos médiuns e frequentadores. Outro ponto importante é que, ao contrário das instituições cujas doutrinas remetem diretamente à Índia, a experiência desses médiuns nos permite compreender as distinções entre entidades orientais e entidades ocidentais e mesmo entre “Oriente” e “Ocidente” a partir de seus atributos (morais, religiosos, imagéticos, etc.).
O Espiritismo no Brasil e a SER
6 Antes de focar no centro espírita que tenho tido oportunidade de estudar mais de perto, apresentarei um breve panorama do espiritismo no Brasil. Surgido na França, em meados do século XIX, o Espiritismo tem por principal livro doutrinador O livro dos espíritos, de Alan Kardec, lançado em 1957. Já na década seguinte os primeiros centros espíritas eram formados no Brasil e a obra de Kardec traduzida. A princípio, havia uma boa aceitação por parte de diferentes classes da sociedade brasileira. A fé espírita era considerada mais racional, O livro dos espíritos era claramente influenciado pelo Positivismo, as teorias tinham sentido lógico e na época o culto à razão e à civilização eram ideias bastante difundidas. Por esse motivo, crer nas doutrinas espíritas não era contra a racionalidade e cientificidade daquele século e muitos engenheiros, advogados e médicos converteram-se ao Espiritismo. Mas entre os adeptos também havia um contingente considerável de camadas mais populares que mesclavam as doutrinas kardecistas e as crenças de origem africanas.
7 Posteriormente, já no período republicano, o Espiritismo passou a ser perseguido pelas autoridades. Os médiuns eram considerados charlatões ou doentes. Teses defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nas décadas de 1920 e 1930 consideravam a incorporação de entidades um distúrbio psiquiátrico. Nessa época, a atuação da Federação Espírita Brasileira (FEB) foi muito importante nessa época no que diz respeito à “descriminalização” e consolidação do Espiritismo no Brasil, tentando padronizar as práticas dos diversos centros espíritas que se formavam em todos os estados, principalmente no sudeste. Em 1949, no novo Código Penal brasileiro não constava mais a palavra “espiritismo” e a religião espírita já tinha uma aceitação melhor devido às obras de caridade realizadas pelos centros e à popularidade de alguns médiuns, principalmente Francisco Cândido Xavier.
8 Apesar de ter sido “criado” na França, foi no Brasil que o Espiritismo teve a maior aceitação, sendo a FEB a principal instituição no mundo difusora das doutrinas espíritas. Mas dentre os tantos centros espíritas, um em especial despertou minha atenção: a Sociedade Espírita Ramatis (SER). A SER é um centro espírita kardecista, ou seja, segue os ensinamentos de Kardec e Jesus Cristo. Mas além dessas duas entidades principais comuns no Espiritismo, a SER segue os ensinamentos de Ramatis, entidade psicografada por diversos médiuns, dentre eles Hercílio Maes, o primeiro e mais influente, que foi amigo muito próximo do fundador da casa, Antonio Plínio da Silva Alvim. Segundo a obra de Maes, Ramatis foi a última encarnação de um espírito que já tivera muitas outras passagens pelo plano material. Sua última passagem foi na Índia do século X, onde era figura religiosa importante em vários santuários. Alguns outros centros espíritas também seguem os ensinamentos de Ramatis, mas por ser o mais antigo e tradicional optei pela SER como base de minha pesquisa.
9 Através dos ensinamentos desses guias, são realizados tratamentos de limpeza espiritual, afastamento de espíritos obsessores, curas espirituais, palestras nas quais são passadas as doutrinas espíritas e obras filantrópicas. Os seguidores acreditam em um único Deus, criador de todo o universo. Todas as outras entidades, anjos, santos, deuses, entre outros, ou são manifestações da obra divina ou são espíritos como um homem qualquer o é, as diferenças são encaradas como interpretações humanas que desconhecem a verdadeira natureza do universo. Os membros da SER se tratam por “irmão”, pois todos são espíritos filhos de Deus, nem melhores nem piores. Apesar da igualdade, acredita-se que os diversos espíritos estão em fases diferentes de evolução espiritual, o que gera uma hierarquia universal. Os que ainda encarnam estão numa fase inferior da hierarquia e o mundo material é um estágio de aprendizagem. Quando atingem determinado grau na escala evolutiva, eles se livram da roda das encarnações, ou a Roda de Samsara (categoria nativa), como chamam os orientais. Não se acredita, portanto, em espíritos orientais e ocidentais, pois eles podem encarnar no Ocidente e depois no Oriente e vice-versa, a diferença se dá pela familiarização deles com os ensinamentos aprendidos na vida material. Há aqueles que se identificam mais com o Ocidente ou Oriente.
A construção de um Oriente
10 Como ficará mais claro a seguir, a presença de Ramatis e seus escritos forma certa imaginação sobre o Oriente, o que retoma a discussão inicial desse artigo. Para captar o universo imaginativo oriental que se constrói, pretendo utilizar uma metodologia diversificada, pois acredito que quanto mais maneiras de apreender as informações que os membros recebem, melhor conseguirei interpretar meu objeto. No presente trabalho, destaco quatro formas de análise distintas: a bibliográfica, a etnográfica, a iconográfica e as entrevistas com membros, sendo que esta última ainda não começou a ser realizada. Por se tratar de uma pesquisa em fase inicial, a construção do Oriente segundo a SER ainda não é muito clara e os dados expostos podem parecer pouco proveitosos para o objetivo final, mas optei por colocá-los no presente texto para mostrar o trabalho que venho realizando.
Análise bibliográfica
11 Começo a análise bibliográfica pela biografia de Ramatis presente no site da SER. Como já foi dito, Ramatis desencarnou pela última vez na Índia, no século X, mas antes disso haveria participado dos acontecimentos do século IV que deram origem ao épico hindu Ramaiana. Em sua última encarnação, Ramatis foi instrutor em um centro iniciático na Índia onde ensinava a seus discípulos o culto aos “ensinamentos do ‘Reino de Osíris’, o Senhor da Luz, na inteligência das coisas divinas”. Depois de desencarnado, Ramatis associou-se a um grupo de espíritos conhecidos por “Templários das cadeias do amor”, que trabalhavam na região do Ocidente, mas ligados as tradições da psicologia oriental. (MAES, 2006)
12 Vale notar que a figura de Ramatis está sempre associada a uma conexão entre Oriente e Ocidente, o que fica bastante claro quando ele narra a criação da Fraternidade da Cruz e do Triângulo. Segundo Ramatis, ocorreu no Espaço a união entre duas Fraternidades de espíritos que operavam em benefício dos habitantes da terra, a Fraternidade da Cruz, que seguia os ensinamentos de Jesus e atuava no Ocidente, e a Fraternidade do Triângulo, que seguia os preceitos espiritualistas do Oriente, seu local de atuação. Essa união originou a Fraternidade da Cruz e do Triângulo, que permite a atuação de guias com maior experiência na espiritualidade ocidental no Oriente e vice-versa. Nas notas introdutórias da coletânea Ramatis – Uma proposta de luz. Hercílio Maes descreve as características de cada uma das partes que originou a união. Segundo ele, “os orientais são lunares, meditativos, passivos e desinteressados da fenomenologia exterior; os ocidentais são dinâmicos, solarianos, objetivos e estudiosos dos aspectos transitórios da forma e do mundo dos espíritos”. (MAES, 2006) Percebe-se a associação entre Ocidente e objetividade, que também é presente quando Ramatis fala sobre Alan Kardec, que é claramente associado ao Ocidente. Kardec teria sido contemporâneo de Ramatis quando ambos encarnaram em Atlântida, onde Kardec já mostrava o interesse pelas ciências positivas. Outra distinção interessante entre Oriente e Ocidente é a forma que os guias espirituais de cada tradição utilizam para auxiliar os espíritos encarnados. Enquanto os ocidentais procuram a cura rápida para o sofrimento do paciente, os orientais preferem aplicar a cura em longo prazo, pois “sabem que a eliminação rápida da dor pode extinguir os efeitos, mas as causas continuam causando novos padecimentos futuros”.
13 Para além das distinções mais evidentes e explícitas, outro fator interessante na obra de Ramatis é a relativização das doutrinas redigidas por Kardec. Ramatis afirma em Mensagens do Astral que, independente da crença, o importante são as ações humanas. Segundo ele, o Espiritismo kardecista é uma simplificação da verdade sobre o universo que foi passada para o mundo material, de forma que os encarnados pudessem compreender a Lei do Carma e a Reencarnação de forma objetiva, livre dos simbolismos e “adornos inúteis” próprios das seitas terrenas. Mesmo sem seguir o Espiritismo, uma pessoa pode ser bastante evoluída, caso suas ações sejam boas. Até agora não expliquei mais profundamente o que são consideradas boas ações. As casas espíritas seguem primordialmente as doutrinas morais evangélicas. A paciência, a bondade, a tolerância, a humildade, a generosidade e acima de tudo o amor ao próximo são consideradas virtudes que elevam a alma e a aproximam de Deus. O espírito, encarnado ou desencarnado, pode subir na escalada evolutiva mesmo desconhecendo as doutrinas reveladas através de Kardec, basta que ele pratique as boas virtudes. Os kardecistas “ortodoxos” também acreditam nisso, mas para Ramatis, aquele que realmente crê na mensagem que Jesus passou pode utilizar o vocabulário de qualquer religião sem que o objetivo final do Espiritismo seja comprometido, não precisa usar apenas as doutrinas dos livros de Kardec. Por esse motivo, Ramatis critica o fanatismo, a crença absoluta em alguma doutrina fechada, pois quem se prende demais a dogmas não tem convicção de que está no caminho certo, logo, não tem fé o suficiente.
14 Por essa “discordância” com a doutrina kardecista dita “ortodoxa” e por abordar alguns elementos de outras religiões, Ramatis é visto com maus olhos por alguns centros espíritas. Alguns consideram que seus seguidores se aproximam da umbanda, do exoterismo ou a certos aspectos do hinduísmo, mas essas associações são rebatidas por Ramatis pelos argumentos acima apresentados. (MAES, 1956)
Análise Etnográfica
15 Aparentemente, os tratamentos oferecidos pela SER são bastante parecidos com os de outros centros espíritas, por isso, é provável que e a descrição não aborde o tema inicial do artigo. Mas creio que suas análises são fundamentais para compreender a mensagem que o centro passa para seus freqüentadores, o que certamente ajuda a entender o meu objeto inicial: a construção de um Oriente. Como ainda sou um membro iniciante, só posso freqüentar três tratamentos que a casa oferece: o passe, as palestras e a desobsessão. A seguir narro o ritual de cada um deles e explico um pouco da simbologia envolvida.
O Passe
16 Vou me alongar um pouco mais na descrição do passe, pois tento descrever a disposição da casa onde ele é realizado, que é a mesma da desobsessão. O objetivo do passe é “limpar” o perispírito do paciente, uma pequena “membrana” que envolve todo o corpo conectando o mundo físico à alma.
17 O passe é realizado na casa da Rua José Higino. Entra-se por um corredor largo e logo a frente um membro distribui senhas de atendimento nos dias de tratamento. No final do corredor há um grande saguão quadrado com diversos bancos similares aos de uma igreja católica onde os freqüentadores aguardam a chamada da sua senha. Do lado oposto do salão àquele que chega ao corredor de entrada, há uma pequena rampa que leva ao salão de tratamentos onde são realizados os passes. Quando a senha do freqüentador é chamada, ele se dirige a um membro que fica na entrada da rampa recolhendo as senhas e depois sobe para o salão onde geralmente há uma fila na porta. Vale fazer uma divisão prática dos membros que se encontram nesse salão. Um membro (a) coordena a atividade auxiliado por outros membros (b) que encaminham o freqüentador para os médiuns (m) que aplicam o passe. Várias filas de médiuns são dispostas no salão e, no final, há um mezanino com mais alguns médiuns aplicando passe e uma espécie de altar com as figuras de Ramatis, Alan Kardec e Jesus Cristo além do símbolo da Fraternidade da Cruz e do Triângulo e a seguinte passagem bíblica: “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça e tudo mais lhe será dado por acréscimo”. A iluminação do salão é baixa, composta por uma luz azul central e várias outras nas paredes laterais em tom esverdeado, mas de dia o salão fica iluminado pela luz solar que entra pelas janelas (apesar das lâmpadas continuarem acesas, o que mostra certo simbolismo das cores que abordarei mais adiante).
18 Ao entrar no salão, ainda em fila, os freqüentadores são chamados por um membro (b) que indica o médium que realizará o passe. A participação do membro (b) não é somente encaminhar o frequentador para o médium, esse tratamento só é ordenado pela chegada até o recolhimento da senha, dentro do salão ele (b) faz um “scan” da alma do paciente (termos nativos) para indicar o médium (m) mais adequado, independente do local que ele ocupa na fila de espera. Para ficar mais claro, nenhum paciente fica esperando que um determinado médium termine de aplicar o passe por longos períodos porque esse seria o mais adequado para tratá-lo. É comum o segundo, terceiro ou quarto da fila é escolhido antes do primeiro, não costuma passar disso, mas esses primeiros são alocados em seus médiuns de acordo com a percepção do membro (b) que distribui os pacientes.
19 Quando o paciente se encontra em sua frente, o médium (m) diz: “Bem-vindo à casa de Ramatís, irmão. Peço para que você fique de olhos fechados, relaxe o corpo, eleve seus pensamentos a Deus e permaneça em prece”. Não é possível acompanhar como seu próprio passe é feito devido à permanência de olhos fechados, mas quando entramos no salão, antes que comece o procedimento, podemos observar os outros pacientes recebendo passes espirituais. O médium (m) realiza movimentos em torno do corpo do paciente sem encostar, como se estivesse limpando uma fina camada exterior (o perispírito) por toda sua extensão e, por último faz um sinal da cruz na sua testa (dessa vez encostando o dedo na pele) e diz “Vai em paz, irmão.”
20 Os pacientes, ao sair do salão de tratamentos, passam por um corredor com galões de água fluidificada, uma espécie de “água benta” dos espíritas que é bebida geralmente após o tratamento, mas também como água normal. A iluminação desse corredor é verde e acima de cada lâmpada fixada nas paredes atrás dos galões temos imagens de Kardec, Jesus, Ramatis, além do símbolo da Fraternidade da Cruz e do Triângulo. Segundo Ramatis em A mediunidade da cura, a matéria possui energia etérica, que age no perispírito das pessoas. A água, por si só, já é um elemento energizante e revitalizador para o perispírito, mas após um médium de boa saúde espiritual passar seus fluidos energéticos para ela através de passes, essas capacidades são ampliadas. Por isso a água fluidificada é considerada um remédio para enfermidades da alma, e consequentemente para as do corpo, pois as alterações da alma influem no corpo material, segundo as doutrinas espíritas.
As palestras
21 As palestras, no horário que eu freqüento, são realizadas na casa da Rua Maria Amália. Ao entrar pelo portão dianteiro, o freqüentador passa por um pequeno pátio até entrar no prédio. O auditório é no segundo andar da casa, à frente da platéia há um mezanino onde ficam os palestrantes. Acima deste, encontramos novamente o trecho bíblico: “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça e tudo mais lhe será dado por acréscimo”, assim como no salão de tratamentos da Rua José Higino, e no fundo as imagens de Jesus, Kardec e Ramatis. No térreo do auditório, há um telão que reproduz a palestra em tempo real para aqueles que não podem subir as escadas ou caso o auditório fique cheio. Dentro do auditório, a platéia é dividida em um setor masculino à direita do palestrante e um feminino à esquerda, os membros que organizam não colocam homens e mulheres sentados no mesmo banco.
22 A palestra é proferida sempre por três membros distintos, cada um fala por um determinado período. Toda semana tem um tema diferente, ao todo são vinte e quatro temas que compõem um ciclo. Não vou entrar no conteúdo das mesmas, pois elas passam as doutrinas presentes nos livros para os freqüentadores, muitas delas já explicadas nas outras partes do trabalho. A partir de um determinado momento, o palestrante para de falar por conta própria sobre o tema para comentar trechos de livros doutrinadores (de Kardec, Ramatis ou outros autores vinculados ao Espiritismo) lidos por outros membros que o auxiliam. No começo e no final de cada palestra há um momento de oração e meditação no qual o palestrante pede aos freqüentadores que pensem em coisas boas, elevem seus pensamentos a Deus.
A desobsessão
23 A sessão de desobsessão acontece no mesmo salão do tratamento do passe, com a mesma iluminação e a ordem de distribuição de senhas para atendimento funciona de maneira semelhante. Ao entrar no salão o paciente aguarda até que os membros que coordenam a atividade indiquem para quais médiuns ele deve seguir.
24 Para cada paciente, dois médiuns realizam o trabalho. O paciente é o colocado deitado em cima de uma espécie de maca cuja cabeceira fica encostada na parede e é coberto por um pano branco deixando descoberto apenas a cabeça e os pés. Dos dois médiuns que realizam o trabalho, um incorpora o espírito obsessor enquanto outro conversa com este a fim de levá-lo ao caminho de paz segundo as doutrinas espíritas. O incorporador senta-se de costas para a parede ao lado direito do paciente deitado, enquanto o doutrinador senta-se de frente para o incorporador. Ao lado esquerdo do paciente, senta-se a dupla de médiuns que trata do paciente ao lado, numa distância muito pequena, sendo possível escutar o tratamento ao lado tanto quanto o seu próprio.
25 Após cobrir o paciente, o médium doutrinador pede para que ele feche os olhos eleve o pensamento a Deus e permaneça em oração, depois disso, passa a realizar movimentos com as mãos ao redor do corpo do incorporador e a chamar o espírito próximo mais necessitado através de seus amigos e guias espirituais. Como devo permanecer de olhos fechados, não é possível acompanhar quando o médium incorpora, apenas através da observação de outros pacientes, posso dizer que o incorporador faz um pequeno movimento que varia muito, mas de alguma forma passa o sinal de que a entidade já está falando por ele. É comum que esta pareça desorientada, sem saber exatamente onde ela está e o médium doutrinador procura explicar o que é a casa espírita, sempre tentando tranqüilizá-lo afirmando que ela está entre amigos. Também é comum que o espírito não se de conta de que já está desencarnado. Para informá-lo do ocorrido, o doutrinador lhe pergunta se o corpo que ele está agora é o mesmo que outrora ele estava e a resposta, obviamente, é negativa.
26 Segundo o Espiritismo, em nossas várias encarnações, fazemos mal a uma série de outros espíritos que, quando desencarnados, procuram nos fazer mal de alguma maneira. Durante a desobsessão, o médium doutrinador tenta explicar ao espírito incorporado que ele não chegará a lugar nenhum se perpetuar a vingança, pois se agora ele está me fazendo mal, posteriormente eu farei mal a ele num ciclo sem fim. O médium age na tentativa de encaminhar o espírito obsessor para as colônias do além, para junto de seus irmãos também desencarnados que lhe farão o bem. A casa espírita se coloca como uma assistência tanto para encarnados quanto para desencarnados no sentido da evolução de cada espírito, que já foi explicada. Quando o espírito desencarnado é convencido a seguir seu rumo não fazendo mais mal ao paciente, o doutrinador pede que os guias espirituais o recebam. Em seguida o médium desencorpora, o doutrinador faz o sinal da cruz na testa do paciente e lhe diz “Vai em paz, irmão” assim como no final do passe.
Análise Iconográfica
A importância das cores
27 Gostaria de começar esta análise comentando a importância das cores para os seguidores das obras ramatisianas. A figura que o médium Hercílio Maes descreve como sendo de Ramatis possui cordões presos ao turbante que usa de diversas cores diferentes, cada uma indicando um raio. O “carmim indica o ‘Raio do Amor’; o amarelo o ‘Raio da Vontade’; o verde o ‘Raio da Sabedoria’ e o azul o ‘Raio da Religiosidade’”. Vale frisar que a religiosidade no entendimento espírita é a ligação com o divino, a conscientização de haver a centelha de Deus dentro de si, o que é muito ligado a prática das boas virtudes já descritas.
28 A questão das cores é percebida no centro. No salão de tratamentos, onde são feitos passes, desobsessões entre outros, a iluminação central é azul, e nas paredes laterais são colocadas diversas lâmpadas verdes. Na área onde ficam os tonéis de água fluidificada, como já falado, a iluminação é esverdeada.
O jornal da SER
29 A principal fonte de imagens relacionadas ao Oriente (que geralmente remetem à Índia) é o Jornal Ramatis, produzido pela própria SER bimestralmente. Não são todos os exemplares que contêm artigos e imagens que abordam o tema que discuto, mas muitos trazem experiências associadas à espiritualidade oriental. O exemplar número 49, por exemplo, traz na capa o casal Rama e Sita, símbolos do poema hindu Ramaiana, um épico cujos acontecimentos Ramatis teria participado, no século IV. Já no exemplar número 44, a capa traz a imagem de Yashoda e Krishna, entidades bastante importantes na mitologia hindu. O jornal traz em todas as capas o símbolo da Fraternidade da Cruz e do Triângulo (ver anexo), sendo o triângulo associado ao Oriente, na passagem que já descrevi sobre a formação da mesma.
Conclusões
30 Esta pesquisa se encontra em estágio inicial (estou a menos de três meses no campo), portanto seria prematuro tirar quaisquer conclusões sobre o imaginário oriental formado na SER. O que pretendo indicar são os problemas encontrados até a presente etapa, a maneira que pretendo usar para resolvê-los e as próximas etapas que pretendo realizar. Apesar do pouco tempo, espero ter apresentado um panorama claro e objetivo sobre o trabalho que venho realizando e pelo menos um esboço da questão principal a ser respondida.
31 As fontes que abordei até agora estão disponíveis para qualquer freqüentador do centro, mas isso não significa que todos eles reparam nos detalhes que eu como pesquisador reparei. Cada um irá acessar a informação que lhe for conveniente, o freqüentador normal não é obrigado a ler os livros de Ramatis ou ler o jornal. Mesmo acessando esse conteúdo, não é possível afirmar que ele associe isso ou aquilo ao Oriente. É razoável crer que os médiuns (que são muitos) e membros mais antigos da casa tenham uma visão diferente do freqüentador iniciante acerca das doutrinas em geral e do meu tema em especial. Para tentar compreender como essa informação chega a cada um, pretendo realizar entrevistas com os membros abordando a figura e a obra de Ramatis e o contraste com centros espíritas “ortodoxos”. Terminado esse ponto, pretendo visitar outras casas espíritas cariocas que seguem os ensinamentos de Ramatis para comparar as visões sobre essa entidade tão peculiar.
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PARA CITAR ESTE ARTIGO
Referência eletrónica
Felipe Brito Macedo , «Uma Índia na Tijuca – Concepções, imaginações da Índia a partir de um centro espírita carioca», Ponto Urbe [Online], 9 | 2011, posto online no dia 31 dezembro 2011, consultado o 11 julho 2022. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/1814; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.1814